quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Odisseia da minha prótese

A odisseia da minha prótese


Fugi dela como o diabo foge da cruz, durante uns dez anos.

Meu medo era poder ir parar a uma cadeira de rodas.
Estou a vê-lo:
 "você tem esta anca destroçada"...
me disse o médico ao ver a radiografia, com aquela frontalidade estranha que  caracteriza a classe, ao dar a má notícia aos seus doentes...
As dores já eram muitas.

- alternativa à operação? - perguntei.
- ir aguentando com comprimidos. Basta um de 50mg por dia. Mas o fígado...

E assim fiquei todo este tempo, em queda lenta.

Voltaren foi a minha prótese.
Até que, um dia, o testemunho duma pessoa amiga me abriu o caminho e empurrou para a frente.
Fora um bom médico que o libertou e repôs normal.

Fui consultá-lo.E voltei lá com uma radiografia.

- oh! como isto está!...Quando quer ser operado? Uns exames e vamos pôr uma prótese.
- pois sim. Só que tenho de voltar para a Alemanha e permanecer lá uns três meses.
Estávamos em Março.
- bom. Vamos esperar por Agosto. Quando eu vier de férias.

Assim foi.

Nova consulta de preparação. Novos exames.

- quando quer ser operado? - perguntou.
- já!- respondi.

Olhou-me fixo. Quer ser amanhã? Surgiu uma vaga.

- Eh pa!...E quando voltará a ser possível?
- só em Outubro.

- então é já.

Minha mulher que me esperava, muito programática nos seus planos, cá fora no carro, com a canita ao sol, ar condicionado ligado, ficou desorientada. Mas rendeu-se.

- então, vamos fazer por o operar amanhã, pelas 19 horas.
Venha às 16 h.

E assim foi.

Pouco depois estava a entrar no meu quarto, voltado para o Tejo. Muito agradável.

Vesti uma opa branca sobre o corpo nú.
Pelas 18h e 30m chegou a equipa para me levar para a "forca".

Corredores e mais corredores, para a esquerda e para a direita. Por aquele cenário de camas e cadeiras espalhados, muito animadores.

Sentia-me calmo e seguro. Finalmente, aquela sala cheia de luzes no tecto. Transferiram-me para a mesa da operação.

Um a um se me apresentaram os artífices da patifaria qua me iam fazer...
- eu sou o anestesista. um rapazote, com barba rala, olhos azulados e cabelos quase rapados, já com abertas.

Depois as enfermeiras. Joviais. Muito descontraídas irradiando simpatia.

- que tempo irá durar?- perguntei
- umas duas horas. Passam depressa. Nem vai dar fé. Uma epidural. Só sente da cintura para cima. E um comprimido para adormecer.

Daí a pouco, ouvi a voz grave do médico operador.

- Bem disposto? perguntou.
- Estou tranquilo. Faça como se fosse ao seu pai.

Ele sorriu.

Ajeitaram-me o corpo para a melhor posição e passei-me, calmamente, para o outro lado.

Quando acordei, senti marteladas fortes, no meu osso da perna, como um pedreiro a abrir um furo numa laje de pedra.
- que é isto? Dor não sentia...Só tinha de contrariar as pancadas.

- pronto, já está!...me disse o médico, sorridente, levantando o lençol que me cobria a cabeça. Nem precisou de sangue alheio!...

- agora vai para os cuidados intensivos, por precaução e depois, para o seu quarto.

- Sim, senhor.

De novo a cama de rodas e aí vou.
Um salão amplo. Várias camas com recém-operados, separadas, lado a lado, por cortinas.

À frente a legião de pessoal, enfermeiro e não, atendendo, registando e controlando quem chegava e saía, conforme as instruções médicas.

Curvo-me perante a abnegação heróica e dedicação, com que estes iguais atendem os indefesos. Horas e horas sem fim, dia e noite.
Só gente nova. Só com um clima de boa disposição a dominar aquele ambiente se pode aguentar.

Tudo ouvi. Porque dormir não havia meio.

Só pelas 18 horas do dia seguinte entrei no quarto. Não o mesmo. Tinha ido à vida para outro. Receei perder as vistas. Mas não. Foi-me atribuido um semelhante.

Lentamente as pernas foram acordando da forçada hibernação.

Tudo me era impossível de alcançar por mim. Fiquei reduzido ao zero.

Que maravilha ver como aquelas enfermeiras nos cuidavam!
Me alma rejubilava por constatar que, afinal, neste mundo cruel há muito bem em acção...

No 5º dia, o médico, sem qualquer dúvida, deu-me alta. Os resultados estavam todos muito positivos.

E aqui estou em casa. Canadianas. Subindo e descendo escadas, já com vontade de carregar no pedal do meu carro que ali me espera saudoso.

Mafra, 11 de Agosto de 2016
14h11m

Jlmg

Joaquim Luís Mendes Gomes

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