quinta-feira, 30 de abril de 2020

Café da manhã



Café da Manhã


Tilintam as chávenas do café.
Zumbe a máquina de o moer.
Ferve em brasa a bica que sai da bica.
Soam sem alma, cantos no ar,
Só para distrair.
Por encomenda de quem só quer ganhar
E pouco perder ou dar.

Já não se ouvem as canções douradas
De vozes sonoras,
Com timbre de sino,
Como sereias
É tudo um embrulho

Para só os olhos verem,
Sem fogo a arder.

È a vida moderna
Que tem mais de pobre
Que rica,
Embora não o queira ver…


Café Castelão em Mafra, 22 de Março de 2013
11h13m
Joaquim Luís Mendes Gomes

Arrecadas d'oiro



Arrecadas d'oiro

Arrecadas d'oiro reluzentes nos colos suculentos das minhotas.
Lenços pretos rendilhados.
Com flores rúbias e amarelas.
Largas rodas das saias aos godés.
Meias brancas torneadas
E soquetes pretas de verniz.

Rostos feros de sangue vivo.
Olhos puros de açucenas.
Cabelos negros de alcatrão
Em tranças pretas sobre o peito.
Brincos longos de oiro em chama.
Quase esgaçam as orelhas.
Níveos açafates de flores.
Para o andor da Agonia.
Só no Minho...só no Minho...

Mafra, 30 de Abril de 2020
13h35m
Jlmg


Espaços vazios



Espaços vazios
 
Se não se ocupam bem os espaços vazios, vêm as gramíneas e o cobrirão de nada.
Sombra só e infertilidade.
O espaço fez-se para construir.
Erguer uma obra perfeita e bela.
Uma árvore com flor e fruto.
Uma casa cheia onde viceje a alegria da vida abundante e fértil.
O deserto é um mar de espaços mortos. Secos.
Donde a vida desertou há muito.
Para nada servem.
Apenas para macerar os viandantes e dromedários que os têm de suplantar.
Na luta pela sobrevivência.
Como é elo um jardim de flores ou um pomar. Rico e variado…
 
Mafra, 30 de Abril de 2020
11h16m
Jlmg

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Horrorosa modernidade...


Horrorosa modernidade…

Ficaram ermas as terras.
Se ausentaram as gentes em hordas.
A fome.
A inclemente adversidade.
A metralha a toda a hora.
A esperança morreu.
Recomeçar.
Enquanto há tempo.
A única salvação.
Noutros quadrantes.
Arriscar a vida.
Vender as forças, pelo pão da sobrevivência e da segurança.
E nada seria preciso.
Houvesse justiça e solidariedade.
As leiras de terra seriam bastantes.
E as colheitas certas.
Sol e chuva à farta, na hora exacta.
Como só o sabe a Natureza.
Cada povo em sua terra.
Assim Ela o destinou.
Mas, a humanidade se encapelou.
Os poderosos de um lado.
Do outro, os escravizados.
Se abalançam aos mares e ao deserto.
Uns chegam. Muitos não.
Batem à porta das fronteiras.
Mais uma vez se divide o mundo.
E, ó vergonha!
Se erguem gettos.
Como se não fosse uma só a humanidade...

Mafra, 29 de Abril de 2020
17h45m
Jlmg

terça-feira, 28 de abril de 2020

Despertar



Despertar

Aquela doce sensação do despertar, cada manhã.
Tomar consciência de que a vida está em nós e nos anima.
Ver a luz entrar, às golfadas, pela janela.
Ouvir o piar das toutinegras.
O rapelhar das socas e dos tamancos, pela lage das barrocas.
O terno Mhúúh das vacas, tóc-tóc, a avançarem lentas para os campos.
A voz grave do carreteiro dos esteios a tanger a boiada, valente e generosa.

As ramadas verdes das videiras que escondem suas uvas negras.
A bicicleta dócil à minha espera na garagem.
Minha prenda da escola.
Tudo eu lembro saudoso neste generoso despertar que se repete em cada dia...

Mafra, 28 de Abril de 2020
13h27m
Jlmg

É transparente a melodia...




É transparente a melodia...

Devassada pelo talento, é transparente a melodia.
Não importa a voz e o instrumento.
Reluz à jaça e faz estremecer em profundidade as emoções.
Cai abrupta. Rasga as cortinas da insensibilidade.
Sabe a som. Cheira a mel.
Embriaga. Fulmina os recantos mais sombrios como se na eira ao sol.
Não conta a idade. É eterna sua candura.
Atravessa-a como ao cristal.
Não há jaça que a enegreça...

Ouvindo Nikolayeva-Tchaikovsky-Piano Concerto No.1-part 4 of 4

Mafra, 28 de Abril de 2020
10h58m
Jlmg

Não sou esdrúxulo...


Não sou exdrúxulo…

Não sou exdrúxulo.
Tenho o acento tónico na minha espinha.
Não vergo ao poder da insolência.
Arraso o estrépito oco e seco da ignorância.
Prego o bem-estar e o bem querer só porque admiro a solidariedade.
Tenho em mim muitos defeitos.
Ninguém me pode acusar de vingativo cego e mau.
Abaixo as desinências da hipocrisia e as vergastas dos déspotas e dos piratas.
Quero ficar sozinho do que mal acompanhado.
Abaixo todos os narizes arrebitados.
Não me venham com mais sermões da treta.
O que eu quero é pregar a paz pela via do respeito ao meu igual.
Merda! Não sou exdrúxulo!...

Depois de ouvir Maria Betânia recitar Álvaro de Campos
Mafra, 27 de Abril de 2020
16h9m

Jlmg

Pela floresta dentro


Pela floresta dentro…

Embrenho-me sem destino pela floresta.
Quero fugir à pressa deste ermo de temor que se abateu sobre a humanidade.
Não vejo como desfazê-lo.
Insidioso, derrubou todos os poderes.
Avançou vitorioso. Suplantou muralhas.
Sem exércitos nem armas pesadas ou tanques de metralhadoras.
Usa só a arma da invasão invisível.
Ninguém deu conta de ser apanhado.
E, quando dá, das duas uma:
Ou vence por si ou está feito.
Já passou para o outro lado.
Não chegam máscaras. Nem confinamentos. De eremitério.
Primeiro que a vacina venha.
É o fartar-vilanagem.
Grande humilhação dos poderosos!
Todos iguais.
Por mim, acredito que Algum mestre nos quis dar uma lição…

Mafra, 27 de Abril de 2020
15h38m

Jlmg

domingo, 26 de abril de 2020

Peso dos anos



O peso dos anos

Carrego em mim o peso dos anos.
Anos passados.
Leves. Pesados.
São minha história.
Escrita no tempo.
Letras lavradas.
Poídas a lima.
Gratas. Sem mérito.
Vieram da frente.
Ficaram para trás.
Levaram saudades.
Mirradas. Moídas.
Secas na eira.
Ladrilho de pedra.
Sementeira ao sol.

Canto soturno.
Sózinho,
Na sombra da tarde.
Grãos para farinha
Que há-de ser pão.

Mafra, 26 de Abril de 2020
19h55m
Jlmg




Santa Mãe Noite



Santa Mãe Noite…


No princípio era o nada.
Do nada se fez a noite.
Da noite nasceu o dia.
Só depois nasceu a terra.
Só depois nasceu o sol.

E do amor dos dois,
Nasceram as serras
Depois os mares.

Toda ufana,
Toda de verde se cobriu a terra.
Vieram flores, como um jardim.
Vieram os peixes.
Vieram os pássaros.
Na perfeição.

Nasceram os homens.
Na vertical.
E dentro deles,
Cresceu o bem
E também o mal.

Com avidez tal…
Nasceu a inveja.

Queriam voar.
Queriam nadar.

Veio a fome.
Fizeram-se predadores.
Aqui à caça…

Depois à pesca.
Descobriram o fogo.
Foi só reinar.

Até que, de caçadores,
Viraram presas…

Forjaram armas…
Procuraram cavernas,
Em defesa própria.

Começou a aquecer.
Primeiro nos vales,
Ao pé dos rios.

Treparam aos montes
E viram mais longe.

De sedentários
A vagabundos,
Foi o passo seguinte.
Vieram as guerras,
Como fratricidas…
E daí para frente,
Foi o fim do mundo.
E foi assim que
Morreu a paz
Que nascera santa
Do ventre da madrugada.
 3 de Abril de 2013
14h14m
Joaquim Luís Mendes Gomes

Primeira impressão


Primeira impressão
 
Paira no ar um mar de influências que agem em nós por leis insondáveis.
Despertam simpatias e antipatias em traços indeléveis.
Incidem nos olhos. Penetram as almas.
Encurtam distâncias.
Acasalam aos pares.
Transmitem certezas de circunstâncias prováveis.
Disparam apelos.
Erguem castelos. Evolam ilusões.
Quase sempre acertam.
Há verdades escondidas que reluzem de longe.
Se creia ou não, a primeira impressão é que vale.
O resto será descoberta.
Do que havia, afinal…
 
Ouvindo Peaceful Instrumental Music, Relaxing Nature music 'Song Birds of Morning" By Tim Janis
Mafra, 26 de Abril de 2020
15h31m
Jlmg

sábado, 25 de abril de 2020

O quiosque da Praça



O Quiosque da Praça

As gerações passam. Numa sucessão sem fim.
Ele, porém, perfilado no passeio, de forma poliédrica, se apresenta cada dia.
Ostenta jornais. Revistas.
As últimas. Actuais.
Passam mirones. Sem cheta.
Vêem as gordas. Primeiras páginas.
Apelativas.
Partem iguais. Mas voltam.
Dentro, há alguém. Que maneja e troca tudo por dinheiro.
Homem. Mulher.
Se revezam.
Ali está abrigado. À margem.
Activo. Tira e repõe.
E, quando vem a vontade.
Fecha a porta. Um dístico na janela:
- já volto…
Vai ao café de trás.
Toma uma bica, por conta do resto.
E volta que volta.
Já era assim com seu avô.
Está ali seu ganha-pão.

Mafra, 25 de Abril de 2020
17h26m
Jlmg

O vinte e cinco de Abril

Sobre o Vinte e Cinco de Abril
Receio bem que as gerações nascidas depois do vinte e cinco de Abril nunca cheguem a dissipar as névoas, tendenciosas que toldam, intencionalmente, esse acontecimento.
O Cavalo de Troia que o trouxe foi aquele minúsculo movimento de capitães, de carreira, por uma causa muito particular e interesseira, a de se libertarem da sina de se verem a arriscar a vida em comissões sucessivas a caminho de África.
Eu residia com minha família,de três filhos, em Almada e trabalhava em Lisboa.
Assistimos a tudo na cratera do vulcão.
Depois de regressar da Guiné e de ter tirado a ferros, o curso de Direito.
Rápidamente o movimento dos capitães foi subalternizado pelo movimento marxista internacional.
Viu nele a oportunidade de cravar aqui em Portugal uma outra versão da experiência cubana.
Vi chegar a Santa Apolónia, dum dia para outro, o líder Álvaro Cunhal.
Vindo de Moscovo.
Mário Soares. De Londres ou Paris.
Cada qual com interesses políticos antagónicos.
Cunhal, pró-soviético, colectivista;
Soares, pró Ocidente, capitalista. Do livre mercado e da democracia.
Extremaram-se as posições. Em movimentos contrários.
Um verdadeiro tsunami político-social.
Aceleradamente se desencadearam saneamentos das cátedras e das altas patentes das estruturas militares.
Uma onda de ocupações selvagens, das empresas mais poderosas; a reforma agrária selvagem irrompeu devastadora.
Os canais da TV e da Rádio foram ocupados.
Anunciou-se a perseguição religiosa.
As universidades pararam. Desertas de docentes capazes.
O MRPP insolente, escavacou num instante uma série dessas faculdades.
Quem estava no fim dos seus cursos superiores ficou perdido, sem saber o que fazer.
O País ficou partido ao meio: A fronteira, guardada a fogo, era Rio Maior.
Estancaram os mantimentos para Lisboa.
Havia que secar as praças e mercados. Vi o da Ribeira sem nada nas bancas.
Houve famílias com miúdos pequenos, que fugiram para a província.
Eu fui um deles.
Tentei emigrar para o Canadá e os serviços da política não me deixaram.
Foi um período muito turbulento que se implantou.
Foi o Vinte e Cinco de Novembro, com Ramalho Eanes e um grupo patriota de militares conseguiu clarear e inverter a supremacia comunista.
A partir da sua vitória, muito lentamente o País foi voltando ao normal.
Outro facto político de tremenda importância foi a chamada descolonização.
Depois de 13 anos de sacrifício não houve família que não visse partir para a guerra de África algum dos filhos.
Quantos por lá ficaram para sempre.
E é de ressaltar que a guerra do ultramar estava práticamente sobre controle.
Em Angola, Moçambique e na Guiné.
Havia prosperidade e progresso crescentes. Reais. Sobretudo nas duas primeiras.
O Governo estava a estudar instituir uma União ou Confederação das províncias ultramarinas com a metrópole.
As potencialidades desta fusão de interesses, respeitadores dos interesses nacionais, era enormes.
Mas, a gula dos países europeus ocidentais ficou embriagada com a hipótese de entrarem gratuitamente em África, para lhe sugarem as riquezas.
Rápidamente, o poder políticos passou para as mãos glutonas desse países oportunistas.
As populações "brancas" residentes e que já viviam bem, viram-se abandonadas pelas nosssas forças militares.
E, depois, foi a debandada. Aquele movimento escabroso de aviões em cortejo a despejarem retornados com seus caixotes. O cais, desde a Ribeira até lá longe, ficaram a rebentar com tanto caixote.
Os retornados que trabalhavam na banca e nas funções públicas entraram, e bem, para os quadros. Entupindo por dezenas de anos as carreiras de quem cá estava.
Desenvolveu-se um certo confronto e hostilidade entre ambas as partes.
De realçar também que o Governo nacional estava a desenvolver uma reforma administrativa profunda.
A legislação fundamental, Constituição incluída, foram revistas em pontos muito importantes. Implantando uma igualdade de cidadania real.
Entre homens e mulheres. Em todos os sentidos.
Tudo ficou paralizado e sujeito ao vendaval das facções políticas.
Esta visão, tudo isto, foi ocultado e desvirtuado às novas gerações.
Creio bem que quem hoje tem para baixo de cinquenta anos já não vai ter tempo de dissipar as núvens de desinformação que lhes meteram na cabeça...
Mafra, 25 de Abril de 2020
10h23m
Jlmg

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Leitos dos rios



Leitos de rio

Sulcos largos, profundos no fundo dos vales.
Encostas gigantes de montanhas a pique.
Falésias abruptas com fragas e tocas ocultas.
Aves gigantes de asas abertas, flutuam serenas ao vento sem cor.
Seus olhos de alcance sem fim perscrutam as crias de longe. Não vá arribe o inimigo faminto.
Em voo picado se arremetem a ele. Afincam-lhe as garras e, num ápice, o desfazem em trapos.
Reluzindo ao sol, deslizam as nuvens em mantos.
Ali, reinará o silêncio e a paz enquanto o progresso insano não vem.
Ouvindo The Best Relaxing Classical Music Ever
Mafra, 24 de Abril de 2020
16h20m

Jlmg

Prisioneiros



Prisioneiros
Cercados na praça deserta onde nada acontece.
Eremitas confessos por dever de ofício.
Atrasados dementes. Ideias cortadas.
Avessos a tudo. Alheios sem metas.

Abandono sem tento. Esquecidos da vida.
Carapaças cerradas nos corpos parados.
Horizontes sinistros ameaçando de morte.
Uma guerra perdida sem armas.
Braços caídos. O desfalecimento total.
Só a esperança perdura por debaixo destas nuvens sem norte.
Uma lição de terror, oxalá se acabe.
De nada importa o poder e dinheiro.
Se a vida especou…
Mafra, 23 de Abril de 2020
21h7m
Jlmg

quinta-feira, 23 de abril de 2020

A ajuda de quem pode



A ajuda de quem pode

Querer nem sempre é poder.
Há em nós uma vontade de alcançar que transcende em muito o que temos.
E muito mais é o que não temos e gostaríamos de ter.
No meio de nós há sempre alguém que pode o que não podemos.
Por isso fácilmente nos humilhamos perante eles.
Assim vamos caminhando e chegando mais além.
Não é censurável. Somos todos assim.
A ajuda mútua é quase nossa lei.
Poder ilimitado só há Um que o tem.
E, o certo, é que nunca se nega a quem lhe pede com confiança e humildade…

Ouvindo Rachmaninoff: Piano Concerto No. 1 - Anna Fedorova and Sinfonieorchester Sankt Gallen - Concert HD
Mafra, 23 de Abril de 2020
11h26m

Jlmg

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Silhueta branca



Silhueta branca
 
Manta ampla verde cobre esta Tapada imensa.
Apenas um. Hierático. Como se a magicar na vida.
Um cavalo branco. Elegante. Ali está especado.
Sopram-no brandas lufadas de vento.
Suas crinas e cauda longa dançam-lhe escorraçando as moscas.
Como foi feliz a mão do seu escultor.
Estátua viva e esbelta de sangue quente.
Olhos doces onde não se vislumbra o mal.
Por ali passa a vida, alheio à chuva e ao sol.
O pasto abunda e o tempo sobra.
Sai-lhe barata a vida porque não paga renda.
Até faz inveja vê-lo aqui da minha janela…

Mafra, 22 de Abril de 2020
16h29m
Jlmg

Doce e clara maresia


Doce e clara maresia
Doce maresia à borda desta praia serena e calma.
A tarde é rainha da liberdade.
Areia fresca que o mar rega com abundância extrema.
A brisa é leve.
Refaço minhas forças ao sol para o resto de minha vida.
Sorvo da paz as energias.
Enxergo ao longe a linha ténue do horizonte azul.
Uma caravela solitária me seduz com sua elegância.
Quem me dera ir nela dar a volta ao mundo.
É bom sonhar e não adormecer.
Ouvindo Schubert
Mafra, 22 de Abril de 2020
Jlmg

terça-feira, 21 de abril de 2020

Barrancos, barrocas e pedreiras descarnadas


Barrancos, barrocas e pedreiras descarnadas

Escorrem as chuvas destemidas sobre os barrancos.
Desnudando o cascalho. Pondo a nú e ao sol a areia seca.
Fulminam os raios que o inferno pariu.
Calem-se todos os sábios. Desertas fiquem as cátedras.
Calem-se os arrogantes e sabichões que nunca estudaram na vida.
Fiquem quedos esses comparsas da maldição.
Gelem os penedos das desgraças.
Rolem as bolas de rochedos prenhes de água pura e fresca.
Venham lestas as tardes calmas dos estios.
Quero ouvir o suão a navegar no mar, pelo Algarve acima.
Nunca calem as vozes quentes dos alentejanos ceifando as searas para cozerem pão.
Oxalá reverdeçam verdes na primavera túrgida…
Ouvindo o imortal Pedro Barroso
Mafra, 21 de Abril de 2020
15h21m
Jlmg

Estarei aqui até ao derradeiro momento

Estarei aqui até ao derradeiro momento…

Não arredarei pé.
Sei que o pacto não será quebrado.
Não cairá a noite sem que um raio venha.
Uma nuvem me traga a prenda.
A surpresa linda que me alegra a tarde.
Quero vê-la a dá-la a conhecer.
As árvores já estão engalanadas de flores e folhas verdes.
Depois virão os frutos.
A seiva dentro, invisível aos nossos olhos, não pára de correr.
Onde quer, brotam flores.
Até do chão da estrada e das fendas escuras das paredes altas.
Inesgotável é a fonte que as alimenta.
Daqui não saio.
Há-de chegar…
Mafra, 21 de Abril de 2020
14h38m

Jlmg

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ressentimentos

Ressentimentos
Ficar a moer e remoer.
Perder da noite o sono por causa dum choque com alguém.
Encher a cabeça de tantas voltas até quase rebentar.
É muito mau negócio.
Só tu perdes.
O outro, certamente, dorme a sono solto.
E faz muito bem.
As coisas esclarecem-se na hora ou no dia seguinte.
A vida é curta e valiosa demais para se perder com minudências.
Basta a carga de cada dia pela sobrevivência.
Saber esquecer é uma faculdade tão importante como a memória.
Não somos ruminantes.
Muito menos mastigar ressentimentos…
Mafra, 19 de Abril de 2020
20h.0m
Jlmg

No compasso das chuvas

No compasso da chuva
Aquela leveza de Agosto em que o azul pinta os céus de anilina.
Quando o barómetro adormecido acorda enramelado pelas manhãs.
Enquanto o ribeiro sinuoso vai serpenteando os campos como um réptil de água doce.
Se ouvem chilreios descompassados pelos lameiros, de melros e cotovias.
E, pela tardinha ao anoitecer, descem as cabras, ovelhas e as vacas, cansadas de rapinar urzes e o capim sem dono.
Se ouve o bater pingante dos dentes nas noras que regam as lavras sequiosas.
Todo esse mundo encantador repousa tristemente no passado quando, intemperã, arriba esta onda infindável de chuva invernosa.
Pegajosa e sem esperança.
Ouvindo Pedro Barroso
Mafra, 20 de Abril de 2020
16h28m
Jlmg

domingo, 19 de abril de 2020

Não vi pitada de gente



Não vi pitada de gente
Não vi pitada de gente na minha caminhada habitual.
Só as duas pombas e um par de melros, inseparáveis.
Que irá na cabeça deles sobre os mortais?
Tão mexidos e abusadores demais.
Janelas fechadas. Jardins desertos.
Cães calados nas suas jaulas.
Que é dos donos?
Os carros parados às moscas.
Das sineiras opulentas do Convento não caem badaladas.
Grades da igreja cerradas.
Onde andará o arcipreste?
Que é feito dos turistas e seus telemóveis a fazerem de fotógrafos descartados?
As cadeiras e as mesas das esplanadas cumprem penas algemadas.
Se não é da guerra, está tudo maluco pela certa.
Pela Tapada imensa, pastam os cavalos indiferentes, sem máscaras…
Mafra, 19 de Abril de 2020
16h56m
Jlmg

Castelos de núvens


Castelos de núvens 
 
Nuvens encasteladas,
Deslizando nos céus, obscurecem o sol.
Derramam tristeza.
Queimam alegria.
Empobrecem a vida.
Que vem e não volta.
Precisamos de luz.
Para ver o invisível.
Assim, o mal não passa.
Venham do mar montanhas de vento.
Varram os céus.
Mostrem o sol.
Alegria da praia.
Ondas do mar.
Ternas lembranças.
Vivências passadas.
Passeios nos campos.
Pinhais de segredos.
Veredas sem fim.
Ribeiros nos vales.
Doces quimeras.
Que o tempo levou.
É bom relembrar.
Ouvindo Serenata de Schubert
Mafra, 19 de Abril de 2020
15h22m
Jlmg

Armazém de abraços

Armazém dos abraços
Amontoados no armazém.
Sobram abraços. Beijos e palmadas nos costados.
A vida amoleceu. Quase podre.
Foi-se o sol da alegria e da fraternidade.
Desertas as ruas e as vielas.
Sorumbáticas as pessoas maldizem o que lhes veio.
Que buraco negro. Nunca mais acaba.
Corria tão bem a vida e não lhes dávamos importância.
Éramos ricos e nos julgávamos pobres.
Ficará muito cara esta lição.
Mas sirva de emenda.
Que lindo dia de sol o de hoje!
Deixa-me aproveitá-lo.
Aí vai mais um abraço!
Mafra, 19 de Abril de 2020
11h44m
Jlmg

Nesta terra...

Nesta terra…
Nesta terra não há barrocas nem becos.
Onde passem as vacas a caminho do lameirão.
De flores, só os cochilos multicolores, pelos bardos e muros altos em pedra solta.
Nem ladeiras de calçadas que atravessem a aldeia erma.
Só os cães a ladrarem aos estranhos.
Nem floreiras em latas mortas poisadas pelas janelas.
Nem ramadas de videiras.
Vinho tinto, espadeiro ou moscatel.
Nem abelhas. Com colmeias de renda baixa.
Nem poços fundos de água eterna.
Nem adros nem ermidas.
Nem alminhas pelas veredas.
Nem as almas dos que aqui viveram.
Todas fugiram... maldita epidemia
Que nunca mais pára.
Nem o diabo aqui quer morar...
Mafra, 18 de Abril de 2020
16h26m
Jlmg

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Quando se tem vinte anos



Quando a gente tem vinte anos
Já lá vão mais uns cinquenta e tal.
Quando lá estava, nem dava por isso.
Tudo era leve e suave.
À parte a ânsia de vencer.
Arranjar um lugar na vida para viver descansado.
Apetrechar-nos o melhor possível.
Escolhendo bem o curso ou a arte da profissão.
Depois, era tentear as coisas.
Respeitando os direitos e sensibilidade dos outros.
A guerra de África surgiu abrupta.
Tudo ficou no condicional.
Se a sorte nos bafejasse, se retomariam todos os sonhos.
Se não, melhor seria atribuir tudo ao destino. Ao ter de ser.
Por mim, tudo passou à história.
Fui e voltei.
Agora, saboreio a paz do dia-a-dia…
Mafra, 17 de Abril de 2020
15h19m
Jlmg

Meu vizinho plátano



Meu vizinho plátano
Havia um plátano corpulento frente à escada de pedra da casa onde nasci.
Nem um nem outra lá existem.
Quando lá passo, relembro minhas manhãs de sombra e de frescura, vendo os carros e as gentes a passar na estrada.
A casinha do São João que eu revestia de musgo para ficar mais bonita, junto à valeta da estrada.
Rendia-me uns tostãozitos ao fim de cada dia.
Transfiguravam-se em rebuçados da loja do Sr. Correia fotógrafo.
Tantas recordações mais do que ali vivi.
Anos quarenta e tal.
Bem me custou deixá-la para ir morar na casa nova em Pedra Maria.
O rio da vida que não para e não nos respeita…
Ouvindo Frédéric Chopin, Ballade no. 1 g-minor op. 23 (Olga Scheps live)
Mafra, 17 de Abril de 2020
11h11m
Jlmg

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Escadas de pedra


Escadas de pedra

Frias. Apáticas. Íngremes demais.
Habituei-me a descer e subi-las, desde menino.
Vestido com opa.
Acompanhando o enterro para a derradeira morada.
Costumes da época.
Um cortejo. O tamanho era conforme a importância de quem ia a enterrar.
Apertava na mão a borla da cor do estandarte.
À frente uma cruz.
Depois o séquito de gente.
A seguir o catre.
Depois o Padre.
Sobrepeliz a voar.
Entoando orações
Pela alma do morto.
Vezes sem conta as desci e subi.
Me ficaram gravadas.
Me falam de longe.
Nas voltas da vida.
Por elas desceram meus Pais e irmãos.
Um dia, será…
Mafra, 16 de Abril de 2020
15h22m
Jlmg