Chave do silêncio

Chave do silêncio

É de oiro a chave do silêncio.
Há cofres impenetráveis.
Só uma chave de oiro os consegue abrir.
Nem o sacrário lhe resiste.
É no silêncio que a alma ouve Deus.
Ele a dá a cada um, na hora de nascer e fica à espera.
Quem por lá entra não quer mais sair...

Mafra, 31 de Agosto de 2019
12h10m
Jlmg

Calos da alma

Calos da alma

Minhas mãos estão lisinhas de quando nasci.
Quando escrevia à pena, tinha só um calo no dedo comprido.
Me acompanhou desde a primária.
Era o meu orgulho.
Sabia tudo de mim.
Os erros que dei.
Os segredos que lhe contei.
Servo fiel. Era um poço.

Depois veio o computador.
Saltito nas letras como num pingue-pongue.
Somo palavras e pinto ideias.
Faço quadros.
Às vezes, belos.
São o espelho de minha alma.
Horas boas. Outras menos.
Me consolo a vê-las partir ao vento.
Como bolas de sabão.
De algumas, sei onde elas poisam.
De muitas, não.
Fico feliz quando me dizem que foram bem acolhidas.
Guardo foto delas.
Para matar saudades...

Mafra, 29 de Agosto de 2019
17h13m
Jlmg

Três formas de andar...

Três formas de andar

Me levanto. Pego nos andarilhos de marchar e vou para minha caminhada.
Curta. Uns 800m.
Ida e volta.
Minha energia não dá para mais.

Pelo caminho vem um rapaz. Em passo de corrida.
Ofegante, mas dominando os passos.
Vai dar a volta ao bairro.
Uns 1600 metros.

Ia eu a chegar ao fim da ida, aí vinha ele com a volta dada.
Menos cansado que eu.

Chegado a casa, sentei-me numa cadeira de braços, sob o beiral da casa, a recuperar.

À frente, passa um vizinho, mais novo uns 15 anos que eu.
De companhia, o cão.
Em passadas lentas, vai dar a volta toda.

Me confortou a lembrança de, dezenas de anos atrás, era um jovem cadete, no quartel de Mafra, de espingarda ao ombro, a preparar a guerra.
Crosses longos e marchas nocturnas, roubadas à cama, montes e vales, pela madrugada, com luar ou chuva.
Um cavalo de força. Nunca fui tão forte...

Mafra, 29 de Agosto de 2019
8h29m
Jlmg

O fluir das horas...

O fluir das horas...

As horas fluem. As folhas vão caindo no fluir do tempo, certo e lento .

As notas breves se sucedem doces, em suave melodia.

Capaz de apagar as mágoas e curar todas as feridas.

Letra a letra, se vai escrevendo o livro duma vida inteira, para lembrar.

Incessante, a fonte escorre e enche, pura de água, o lago fresco.

Invisível, o vento soa e sopra as núvens que vagueiam no céu, na paz da liberdade.

Cobrem-se de verde os campos após as sementeiras.

Em compasso livre se repetem as quatro estações do ano.

Como é bom saber que a bonança vem sempre, depois da tempestade.

Bar Castelão, 28 de Agosto de 2019

10h38m

Jlmg

Fiz na terra uma casinha bela...

Fiz na terra uma casinha bela para morar...

Aconchegada. Numa encosta.

Bate-lhe o sol, logo pela manhã.

Tem chave de oiro. Numa porta de madeira antiga.

Dum carvalho velho que me deixou o meu avô.

Tem janelas. Donde alcanço, muito ao longe, cinzentas serras, lá do Marão.

Onde oiço o chilrear da natureza.

Um ribeirinho de água doce, sempre a fluir.

Toques de sinos, por todo o lado, entoam coros, contam as horas,

Em ladainhas, todas de cor.

E, à tarde, pela tardinha, vejo rebanhos, em passo lento,

virem do alto, que belo dia, todo a pastar.

Vêm contentes, de barriga cheia.

Vivem felizes, na natureza.

Enquanto a sorte e Deus lho permitirem.

Bar Polo Norte em Mafra, 27 de Agosto de 2019

11h51m

Jlmg

Dei-me levar pela maresia...

Deixei-me levar pela maresia

Vesti meu corpo de espuma branca.

Salto as ondas do mar como um cavalo.

Abracei o mundo

Fujo de afogar meu ser no mar da sedução.

Minha meta é o além.

Tantas nuvens espessas mo escondem.

Me entrego cegamente à força que me segura e orienta.

Estou certo.

Vou chegar seguro ao porto para onde vou.

Mafra, 27 de Agosto de 2019,

7h47m

Jlmg

Âncora...

Âncora

Cabeça ao alto e pés no chão.
Segurar bem firme para navegar depois.
Escolher bem o porto.
O perigo espreita e não vai perdoar.

Uma amarra ao cais.
Uma âncora ao fundo.
Nunca é demais.
A violência do tornado pode galgar o molhe.

No mar da vida, a tempestade assola.
Se não se tomar cautela,
O naufrágio é certo.
Só boas amarras.
A ligação a Deus é a paz total...

Bar 7 Momentos, 26 de Agosto de 2019
9h52m
Jlmg

Clique!...

Clique!

Súbito. Um estalido.
A escuridão morreu.
Fez-se luz.
Surgiu o tema.
Ao som da Cavalgada das Valquírias,
Espargem centelhas.
Há fogo a arder.
Labaredas. Nuvens.
Cavalos a trote.
Tinem as espadas.
A ferro e a fogo.
Há vencedores e vencidos.
Impérios da sorte.
Se almejam cenários.
Despojos no chão.
Se desfraldam bandeiras.
A vitória se canta.
Há festa.
Uma madrugada feliz...

Ouvindo Cavalgada das Valquírias de Richard Vagner

Mafra, 25 de Agosto de 2019
19h44m
Jlmg

Ouvir sempre os entendidos...

Ouvir sempre os entendidos...

Ganha muitas vantagens quem ouve sempre os entendidos.
Evita muitos contratempos.
Seja no que for.
Por nós mesmos, corremos o risco de ficarmos no superficial ou no errado.
A visita dum museu guiada por um conhecedor é muito mais rica.
Tantos pormenores ficariam por conhecer.
A história da obra e do seu autor.
A sua relação no tempo.
Com as correntes dominantes.

Olhar para a Ponte Salazar/Vinte Cinco de Abril, depois de se ouvir a explanação do seu Director técnico, apesar de sabermos da participação americana, que ergueu a de São Francisco,
faz-nos admirar e sentir orgulho por ela ter sido, primordialmente, pela engenharia nacional.

Que magnos problemas tiveram de ser resolvidos. Com vista à sua segurança quase absoluta.
Dos benefícios que trouxe para Lisboa e terras da margem sul, sabemos todos nós.
Como ficou mais rica a imagem da nossa capital...

Mafra, 24 de Agosto de 2019,
20h10m
Jlmg

Centurião do Imperador

Centurião do Imperador

Hordas inimigas avançam contra o Imperador.
Centurião fiel O sirvo e defendo.
Querem destroçar seu reino.
Espalham teorias vis sobre a natureza humana.
Homem e mulher, a seu modo, e a par, formam a unidade certa.
Sua dignidade é transcendente.
Paira muito acima das vilanias comerciais.
Repudio a inversão de valores que essa teoria do género propõe.
Só por execrável cobardia dos poderes ela poderá espalhar-se.
Pelas mesmas razões, Sodoma e Gomorra foram definitivamente arrasadas.
É a mesma nossa humanidade.

Ouvindo Beethoven - Sinfonia nr. 7 -- Secondo movimento - Allegretto -- Carlos Kleiber -

Bar 7 Momentos, em Mafra, 23 de Agosto de 2019
10h13m
Jlmg

Sorrateiro...

Sorrateiro

Como um rio, fluindo, sereno e lento, no leito, eu caminho sorrateiro, pelas veredas e atalhos que a vida me vai dando.

Deslumbrado, sigo atento, entre o céu e o chão.

Sou mais um forasteiro a esculpir o meu destino.

De repente, uma vaga longa e espessa de ervas rasteiras, encobriu o meu caminho.

Desorientado, quase me perdia. Não fossem as estrelas e o banho puro de luar, sucumbiria.

Minha sorte e força foram a esperança e a fé.

Ninguém vai sozinho...

Mafra, 22 de Agosto de 2019

17h50m

Jlmg

Tudo bem arrumado e no lugar certo...

Tudo bem arrumado e no lugar certo...

Um concerto não é uma soma de notas bem arrumadas e no lugar certo.
Para isso, bastariam só as pautas.
Trespassa-o uma alma acesa, com cores e variação de sons que nos retratam a ideia do seu autor.

O convite a uma pausa, no frenesi insensível que nos amordaça a existência.

Somos arrastados para as alturas e escaninhos da sua mente criativa.
A revelação, muito pessoal, de quem foi bafejado pelo talento de atender à sedução da música.

Ouvindo Ludwig van Beethoven - Piano Concerto No. 4 in G major, Op. 58 - Hélène Grimaud

Mafra, 21 de Agosto de 2019
17h50m
Jlmg

Pesca de arrasto

Pesca de arrasto

Lanço as redes no mar da inspiração a ver o que aparece.
Peço a Schubert ajuda para dedilhar as notas dos meus poemas.
Quase sempre, tremeluzente, acende uma chama de cores variadas.
Minha alma reage ao som como, à luz, os olhos.
Despertam em mim nubladas sensações que a mente depois descarna e entende.

E, nota a nota, o pensamento vai desfiando e tece a branda melodia que o autor quis transmitir.

Um terno jeito de interligar as artes através do fogo da inspiração.

Ouvindo F. Liszt - "Ständchen" Piano Transcriptions After Schubert - Khatia Buniatishvili

Bar Caracol em Mafra, 21 de Agosto de 2019,
10h23m
Jlmg

Milagres da terra

Milagres da terra

Da terra revolta, de pequeninas sementes,
brotam flores, o vinho e centeio.
Cavalgando no céu, vestida de azul, à volta do sol,
em movimento contínuo,
fabricando a noite e o dia,
modelando estações,
labora e cozinha,
servindo o homem.
Para isso, Deus a criou...

Mafra, 20 de Agosto de 2019
7h45m
Jlmg

Amontoados toscos de pedras em lascas

Amontoados toscos de pedras em lascas

Tecendo as paredes das casas nas aldeias sem nome.
Erguidas a prumo, sustentam telhados pesados de telhas, em caibros;
Cornijas, robustas, demarcam limites sagrados.
Portadas, em madeira ressequida, fecham-lhe as portas e as poucas janelas.
Ombreiras, tão fortes, feitas de esteios graníticos, permitem-lhes que abram e fechem sem medo.

Um lar de família, onde se vive na paz e por graça de Deus...

Ouvindo Khatia Buniatishvili - Schubert: Impromptu No. 3 in G-Flat Major, Op. 90, D. 899

Mafra, 19 de Agosto de 2019
17h7m
Jlmg

A força da humildade

A força da humildade

Todos temos nossas limitações.
Nuns aspectos melhores que os outros.
Noutros, não.
A humildade é reconhecer que temos limites.
E aceitá-los. Com verdade.

Fingir gera conflitos.
Lá se vai a nossa paz.

E é da diversidade que nasce a riqueza.
Poder-se beneficiar do que os outros têm melhor que nós.

Ninguém resiste a quem é verdadeiro.
Sem jactância...

Bar Castelão, em Mafra, 19 de Agosto de 2019
9h52m
Jlmg

Caverna da cabala

Caverna da Cabala

Subi a encosta da serra.
Entrei na caverna da Cabala.
Um punhado de eremitas se dedicava ao estudo da Cabala.
Perscrutando minuciosamente, os escaninhos da Revelação de Deus ao homem.

É grande a dignidade humana.
O Criador cedo se lhe revelou.
Seu plano.
Ao ponto de fazer com ela um pacto de aliança e de salvação.
Tudo está nos livros sagrados muito bem guardados.

A Tora dos judeus.
A Bíblia dos católicos.
A cabala se ocupa deles...

Mafra, 19 de Agosto de 2019
8h58m
Jlmg

À procura dum pretexto...

À procura dum pretexto

Saio à rua, à procura dum pretexto.
É difícil. Não se encontram. São raros.
Meus olhos e ouvidos vão despertos.
Reparo em tudo.
Céu e chão.
Uma pequenina plantinha verde.
Luta e vive em luta para não morrer.
Cresceu em plena rua. Numa falha aberta.
Hoje, estava mais verde.
Da humidade matinal.
O sol, a mais, a preocupa.
Vê-se. Que ela teme.
Por isso, me sorriu.

E aquela pomba alegre.
Poisada no fio eléctrico.
Põe-se a cantarolar quando me vê passar.
E uma flor tão linda. De tons azuis.
Ali num bardo.
Só desabrocha pela manhã. Depois se fecha.

E aquele dono solícito a passear seus cães de guarda.
Como vão contentes.

Que bons pretextos.
Como não sei pintar, deles eu escrevo, mas não digo tudo...

Mafra, 19 de Agosto de 2019
18h2m
Jlmg

Minhas batalhas

Minhas batalhas

Foram tantas minhas batalhas.

Delas não reza a história.

Foram escritas em folhas secas.

Arderam no fogo do esquecimento.

Fujo delas.

Minha memória pálida as lembra.

Quando as leio, minha alma chora.

Vertem dor.

Porquê a mim, e no raiar da vida?

Fiquei sem mãe. Sem lhe poder valer.

Cresci sem ela.

Um vazio aberto. Nunca mais fechou.

Mafra, 19 de Agosto de 2019

14h22m

Jlmg

Desordenadamente...

Desordenadamente...

Escrevo desordenadamente.
Como um carro perdido em derrapagem.
Meu rasto é sinuoso.
Carrego nas palavras como um endiabrado.
Quero que elas falem tudo.
Nada escondam.

Minha mente é um lago verde, rodeado de verduras.
Mergulho nele nas manhãs de desassossego.
Procurando ninfas e oásis de alegria.
Chova chuva, de vez em quando.
Quero ver meus cisnes regalados e sorridentes.
Para longe atiro minhas tristezas.
Cada momento é um pedaço de vida em exaltação, irrepetível...

Bar Castelão em Mafra, 19 de Agosto de 2019
10h45m
Jlmg

Lareira no verão

Lareira no verão

Acendo a lareira torrado de frio.
Minha alma esvoaça aturdida.
Espreita a desgraça no céu pardacento.
Os rebanhos recolheram, fugindo de medo.
Tangida pelo vento, uma tempestade infernal aí vem, varrendo a serra.
Caem trovões esfaimados de raiva.
Se acendem as velas, pedindo clemência.

O mar enfurece. Os barcos da pesca fogem das vagas. Recolhem no porto.
Horas tão negras, num repente, reduzem a pó os fracos e fortes.

Ouvindo Schubert - Impromptu No. 3, Op. 90 (Kissin)
Bar 7 Momentos, 17 de Agosto de 2019
10h39m
Jlmg

O poder da superficialidade

O poder da superficialidade


Mergulhados no nosso mundo de preocupações, cometemos graves erros, pela superficialidade com que encaramos o que não nos interessa.
Digo isto porque acabo de fazer uma visita guiada às ruinas do Convento do Carmo em Lisboa.

Passei largos anos a trabalhar ali perto. Para a Baixa e da Baixa para o Calhariz.
Tive de ouvir falar dessas ruinas causadas pelo terramoto de 1755.
Na minha mente firmou-se a ideia de que aquilo seriam um monte de calhaus e cacos partidos, sem interesse algum.
Por isso, nunca lá fui bisbilhotar.
O que perdi foi imenso e irreparável.
É que, para além da parte da igreja do Carmo que é monumental, apesar de tudo, com suas naves a céu aberto, de que restam lindas e arrojadas colunas, havia e há uma parte intacta.
Correspondente ao transepto do altar-mor. Um recheio de valor incalculável que diz bem como foram os desígnios de grandeza de quem a mandou edificar.
E nos espaços circundantes existia e existe um rico museu. Pioneiro, pela recolha de obras e de peças, tresmalhadas pelo mundo e pelo país e que muito ajudam a entender do que era o mundo dessas eras.
Sobretudo túmulos de príncipes e de figuras reais. Fragmentos em pedra de colunas moçárabes. E, até duas múmias de mulheres índias da América do Sul.
E, tanta coisa mais. Só lá indo. E, sobretudo acompanhado de um guia experto na matéria. Foi o caso.
Por essa razão, vou passar a não ser tão superficial.
Mafra, 16 de Agosto de 2019, 17h15m
Jlmg

Chuva de prata

Chuva de prata

Esta noite, chovia prata.
Havia estrelas. Cintilantes.
A lua ronda vertia luz.
Parecia um sol.

A mata em frente, um lago azul.
Dormente o arvoredo, faiscava chispas.
Um mar a arder.
Se não fosse Agosto, pareceria neve.

Uma noite bela. A lua noiva.
Um encanto vê-la.

Mafra, 16 de Agosto de 2019
12h16m - dia de sol quente
Jlmg

Tudo muda e se transforma

Tudo muda e se transforma

Vi-o verde aquele campo de milho.
Hoje estão secas e amareladas suas folhas.
Escondem espigas, bojudas de milho em grão.
Vão ceifá-lo. E espalhar ao sol, na eira em pedra, até que, prontos, dêem a farinha de que se faz o pão.
E também a semente para a outra vez.

Um milagre à vista, cíclico, como o verão.
A natureza o faz. Para nosso bem.
Só o vê quem sente...

Bar Caracol em Mafra, 16 de Agosto de 2019
10h10m
Jlmg

Espaços quebrados

Espaços quebrados

Há cacos espalhados a esmo pelo caminho deserto.
Nas bermas escuras, brotam herbáceas, sem rosto nem nome.
Pendem ramos à solta das hortas cercadas de muros.
Às vezes, as silvas vorazes invadem a estrada e picam. 
Mas oferecem ladinas amoras bem doces. 
Ninguém lhes resiste.

De hora a hora, passam jumentos com sacos no dorso. 
Fazem os fretes que o moleiro precisa e trabalha.
Tisnado de branco, reluzem-,lhe os olhos azuis, e uma alma de santo no rosto.
E a mó de pedra de mármore não pára, roda que roda, à força do rio.
Passam as horas e o tempo não conta.

O telhado de palha, molhado da chuva, serve de albergue gratuito às pombas sem beira nem dono.
Às vezes, cansado, pega nas contas e reza pelas almas perdidas.
Assustada com o negro da noite a coruja lá fora, se lamenta da sorte que teve.
Para ela a noite é o dia.
Por isso, vive triste e sózinha.

Mafra, 15 de Agosto de 2019, 16h2m
Jlmg

Aprumada e vertical...

Aprumada e vertical...

Cada dia, pela manhã, aí vem ela.
Mala pendente, blusa vistosa, bem brunida.
Caminhando passadas em direcção ao café.
Sobe as escadas. Sorri. Saúda as amigas.
Pede uma "bica" e se senta numa mesa à parte.
Toma o jornal.
Circunspecta, fica a manhã a lê-lo, de fio a pavio.
É sua rotina. Depois que enviuvou aposentada.
Sua história a sabe ela.
No fundo, igual a tantas.
Enquanto houver manhãs e tiver forças para andar...

Bar Caracol em Mafra, 14 de Agosto de 2019
9h22m
Jlmg

Na areia ao sol...

Na areia ao sol...

Na areia ao sol, nascem cactos e plantas com folhas gordas.
Também espinhos, cardos e estrelas do mar.
Mesmo assim, há salpicos de flores, cor rubra e rosa.
Vem do mar o perfume das algas verdes.
Em perene rebuliço, as ondas se espraiam tontas, na areia de sal.

À beira-mar, restam pégadas de pés descalços.
Enquanto as dunas se escondem do vento que as peneira agreste.

Sentado, medito, olhando ao longe o mar distante e azul.

Ouvindo Khatia Buniatishvili - Schubert: Impromptu No. 3 in G-Flat Majo
Bar Castelão em Mafra, 14 de Agosto de 2019
8h42m
Jlmg

Núvens laboriosas e irrequietas...

Núvens laboriosas e irrequietas...

Onde vades, donde vindes, ó núvens tresmalhadas por esses vales que não têm mais fim?
Sobre encostas, sobre ravinas, desde as serras, ermas, desavindas.
Ora chorando, deploradas, ora rindo em copiosas gargalhadas.
Sois amadas. Por estas gentes tão sózinhas.
Benfazejas.
Dais-lhes vida às suas terras.
É abundante e pura a vossa água que as emprenha.
Como vem da natureza.

Sois temíveis, quando zangadas.
Só São Jerónimo e Santa Bárbara vos faz calar, recorrendo ao poder divino...

Mafra, 13 de Agosto de 2019
20h22m
Jlmg

Perfume oriental

Perfume oriental

Paira sobre nós um perfume exótico.
Flores desconhecidas.
Como se imagina. Oriental.
Nos toma todo. Embriaga.
Tolda-nos as ideias.
Ressoa fundo de cavernas desconhecidas.

Sabe ao Olimpo.
Onde se passeiam os deuses e as nereidas.
Me entrego. Fico planando.
Como um condor.
Nas alturas das colinas.
Lindas cores sombreiam o horizonte.
Faz sol cá dentro.
Chovem pétalas e açucenas.
Remanso breve onde nem as aves se entendem.

Brandos sopros de ninfas ou de sereias.
Um clímax que arrepia nossos tendões.
Me prosto. Cheirando a terra, prurando suas raízes...

Ouvindo Rimsky-Korsakov: Scheherazade (Svetlanov - USSR State Symphony

Bar Castelão em Mafra, 13 de Agosto de 2019

Dia de sol
Jlmg

Surpresas da vida

Surpresas da vida

A vida é surpreendente. Vai escrevendo uma folha em cada dia.
Segundo um nexo que nos transcende.
Por vezes, nos apanha desprevenidos.
Acontece o inesperado.
Umas vezes, bom. Outras, não.
Só no final se vê a razão de ser.
Porque não vamos sós.
Não somos geração espontânea.
Somos teclas dum piano que só um Artista toca.
Como num ensaio.
Por vezes, desafinadas.
O pior é que, por vezes, reagimos a que nos afine...

Ouvindo Dvorak - New World Symphony

Mafra, 13 de Agosto de 2019
8h51m - dia de sol
Jlmg

Insuportável a indiferença dos próximos

Insuportável a indiferença dos próximos...

Sofrer a indiferença dos próximos sem qualquer razão, é como beber licor azedo, quase cicuta.
Inimaginável como possível.
Mas é real.
Acontece.
E quando menos se espera.
Dum filho adulto, para um pai ou uma mãe.
Que sempre lhe deram o seu melhor.
Quebra-se a ligação íntima que os unia, por razões absurdas.
E, quando se tem de viver sob o mesmo tecto.
Sobe e desce escadas. Passa pela gente diante dos olhos  e é como se não existíssemos ou lhe fôssemos invisíveis.
É diabólico. Terrível.
Humano não...

Desengano

Desengano

Quem teve a desdita de, um dia,  enganar alguém não espere ficar igual para quem foi enganado.

A confiança é um sentimento muito sensível.
Se embota com uma ligeira aragem, fria e inesperada.
É traição quebrá-la sem outro motivo que não o interesse próprio.

Ninguém perdoa radicalmente, por mais que queira.
Ficará sempre na posição de ferido e incurável.
Uma mancha indelével. Nada a tira.

A lealdade não tem preço nem remissão.
É a plataforma indispensável da convivência humana.

Um valor sagrado. Sem cotação no mercado.

Khatia Buniatishvili - Schubert: Impromptu No. 3 in G-Flat Major, Op. 90
Bar 7 Momentos em Mafra, 12 de Agosto de 2019
9h9m
Jlmg

Brotam do chão e da erva...

Brotam do chão e da erva...

Brotam do chão e da erva, aromas de seiva e perfumes de vida.

Desabrocham intensos. Enchem a terra de húmus.

Florescem os caules. Os ramos abraçam os olhos.

O vento os faz dançar aos sons etéreos da criação.

Caem as folhas cansadas. Impregnam torrões, preparando-lhes a mesa da vida.

Álacres botões de flores e de frutos despontam em jacto.

As almas sedentas fazem do chão seu mar de descanso...

Ouvindo o piano de Schubert - Impromptu No. 3, Op. 90 (Kissin)

Mafra, 11 de Agosto de 2019

8h13m

Jlmg

Brotam vergônteas...

Brotam vergônteas...

Brotam vergônteas das hastes longas.

Passaram o inverno sumidas no ventre dos caules.

Desabrocham vibrantes. Regadas de seiva. Querem crescer.

Quando vier o verão, a praia do sol as espera.

Sôfregas de vida, se imaginam ser árvores, crescidas ao alto.

Com ramos tenrinhos e aves poisadas, Cantando seus hinos.

Molhadas de luz.

Grande mistério vê-las medrar.

Botões pequeninos. Sem escola nem letras.

Sabem de cor sua lição.

Está-lhes inscrita no sangue.

Uma pauta sonora raiada de cores.

Ouvindo Evgeny Kissin Rachmaninoff Prelude Op 3 No 2 in C Sharp minor

Mafra, 7 Momentos, 11 de Agosto de 2019

Jlmg

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Evgeny Kissin Rachmaninoff Prelude Op 3 No 2 in C Sharp minor

Salle Pleyel, Paris 19.09.2014 encore after Rachmaninoff's 2nd piano concerto

Agora, os anos são mais curtos

Agora, os anos são mais curtos...

Num abrir e fechar de olhos,
Mais de sete dezenas já cá cantam.
Ainda há pouco deixei a primária...
E por onde andei.
Caminhos longos e muito sofridos,
Alguns deles.
Custaram tanto.
O sol abriu e eis-nos em paz.
O que falta é muito menos...

Bar 7 Momentos, em Mafra, 10 de Agosto de 2019
10h19m
Jlmg

Cobardia

Cobardia

Alamedas, rotundas e praças públicas.
Cada dia e a toda a hora
Um fosso largo de covardes.
Grassam greves. Pura selvajaria.
Manipulação de mafiosos.
Todos se calam. Ninguém reage.
Nem por cima nem cá debaixo.

Agora os motoristas. Depois os enfermeiros e os médicos.
Conforme os interesses da conveniência. Suja e egoísta.
Até os polícias e os magistrados.
Uma loucura!...
Que raio de democracia é esta?
Um vazadouro de lixo.

O Povo é um pandeiro.
Leva de todos os lados e fica inerte.
Quem põe ordem nesta bagunça?...

Ouvindo  Ludwig Van Beethoven 5ª Sinfonia em Dó Menor

Bar 7 Momentos em Mafra, 10 de Agosto de 2019
9h45m
Jlmg

Travo na garganta

Travo na garganta

Depois dum crescendo de emoção, há um ponto em que a garganta parece que rebenta.

A fala fica impotente.

Os olhos se marejam de lágrimas quentes.

O peito não pára de arfar.

Depois, vem o choro ou riso em convulsão.

E vai levar tempo para tudo serenar.

Uma manifestação da alma na sua linguagem que não é a do corpo.

Como a do mar quando, de tão contente, se espraia de branco, como uma noiva, sobre a areia...

Mafra, 9 de Agosto de 2019

21h30 m

Ouvindo Debussy:

Suite aus »Nocturnes« und »Images«

Jlmg

Nas asas do sono

Nas asas do sono

Nas asas do sono, voo e me embalo.
Viagens de sonho por um mundo ignoto.
Vêm do espaço e do tempo as sombras.
Me enlaço a elas.
A umas conheço.
Outras apenas me lembro.
Passado remoto, de infância, começo da vida.

Serenidade e paz. Segurança e firmeza.
Na casa dos pais.
Doce enlevo.
Átrio de luz e de esperança.
Onde aprendi a voar.

A ele recorro, agora, nas horas piores.
Alimentam meu voo.
Plano no alto. Vendo ao longe.
Sem brumas.
Não temo o abismo.

Bendita a hora e o lugar onde, onde há muito, nasci...

Ouvindo Brahms - Piano Concerto No. 1 | Hélène Grimaud, Piano

Bar Caracol em Mafra, 9 de Agosto de 2019
11h32m
Jlmg

Regresso

Regresso

A partir do nascimento, começa o regresso, sem data de chegada.
Tantos passos. Tantas sendas e encruzilhadas.
Cada escolha apaga outras, sem destino.
Cada passo me afasta e me aproxima.
Não às cegas. Uma luz acesa. Uma voz.
Meus faróis.
Me acenam.

Há um porto, amplo, seguro e certo que me espera.
Para ele eu vou.

Bar Castelão, 9 de Agosto de 2019
9h9m
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